quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Pregos de galocha


Há pressentimentos que devem ser tidos em conta. Passeava-nos, no caminho escola - casa e vice-versa. Nós ainda, não nos apresentámos? Somos: um par de botas da Guess… salto alto com um G, G, G... estampado no cano da bota. A vaidade é tão melosa, sobretudo quando não existem passeios e o caminho de acesso até a casa é um beco de terra batida e desnivelado.

Certo dia, o inesperado aconteceu: perdemos um tacão. A nossa dona averiguou junto dos colegas onde existiria um sapateiro. Ali, mais além, viras à direita e zás uma tabuleta a dizer sapateiro.

Passaram-se semanas, sempre que olhava para as suas Guess sentia um mau pressentimento. Porém, às vezes, não acreditamos em nós. Meteu-nos num saco e levou-nos ao que seria um sapateiro:

- O que deseja?

- Por uns tacões nas minhas botas?

- Quando venho buscá-las?

- Quarta-feira?

- Quanto irão custar?

- Não sei, responde o sapateiro, tenho de ver o tipo de tacão que serve e o que vai melhor com as suas botas.

Ao ouvir isso a nossa dona pensou: “vim ao sítio certo”.

Será!?

Durante a semana uma violenta constipação deixou-a enferma, mas ao olhar para o nosso espaço vazio pensava em nós.

Quinta-feira, depois da reunião, foi a casa do sapateiro buscar-nos. Estava tanto frio. Bateu à porta e, esperou ao relento que nós aparecêssemos, pagou e voltou para casa. A curiosidade da nossa dona é igual ao seu desejo de perfeição: abriu o saco, no meio do caminho, e observou incrédula os nossos tacões: tinham sido pregados com cinco pregos de galocha, o salto da minha mana estava partido e o couro da bota estava cheio de cola. Caminhou, com o coração em brasa, diríamos que voou como um foguete até casa ,pegou no telemóvel e ligou ao sapateiro:

-Estou.

-Boa tarde, acabei de vir da sua casa, o salto de uma das botas está partido.

- Está um bocadinho, mas eu colei.

- Afinal as botas vão para arranjar e vêm piores. Sabe o preço destas botas?

-Sei sim! São da Guess, mas este salto é muito difícil!

- Pregou os tacões das botas com pregos de galocha. Eu nunca vi ninguém arranjar os tacões assim.!

- Eu não sei fazer de outra forma!

- Se não sabia arranjá-las, não as estragava…. Boa tarde.

O não saber não é defeito, não é uma deficiência. O não saber, o não perceber, o não saber fazer, só se tornam erros gravíssimos, quando a pessoa se assume como especialista e não tem consciência da sua ignorância. Vivemos num país tão atrasado como há trinta e tal anos atrás.


No Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente “Um Sapateiro, com o seu avental e carregado de formas, é quem chega à barca do Diabo. Este fica espantado com a carga que o Sapateiro traz: pecados e formas. O Sapateiro diz ao Diabo, que não entraria ali, pois enquanto viveu sempre se confessou, foi à missa e rezou pelos mortos. O Diabo desmascara-o e diz-lhe que não vale a pena continuar a mentir. O Sapateiro, incrédulo, dirige-se à barca da Glória, mas o Anjo diz-lhe que a carga que trazia não caberia na sua barca e que a do Inferno era a única para ele. Vendo que não conseguira o pretendido, o Sapateiro dirige-se à barca do Inferno, onde entra.”

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Nota da autora: existem muitos sapateiros honrados. E as célebres botas vão ser entregues a um sapateiro honesto que conheço desde de criança.


2 comentários:

Luís (neto de sapateiro!) disse...

E o Sapateiro, vendo que não pode fugir ao seu destino torna-se à barca dos danados, e diz:
"Hou barqueiros! Que aguardais?
Vamos, venha a prancha logo
e levai-me àquele fogo!
Não nos detenhamos mais!"

E lá foi ele na barca do Diabo!

saudade no silêncio disse...

A Forma Justa

Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos — se ninguém atraiçoasse — proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
— Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas"