terça-feira, 3 de maio de 2011

Curisquinho

Nunca falei da minha passagem por Montalegre, das minhas dificuldades de adaptação e do meu medo de ficar só à noite, da minha solidão no meio de tanto frio, das minhas noites sem dormir e dos meus olhos de zumbi nas aulas. Certo dia, uma aluna, adulta, decidiu que a minha vida de ave nocturna tinha de acabar. Era costume deambular pela casa espreitando uma rua vazia e fria como eu. E, foi nestas circunstâncias, que apareceu o meu melhor amigo: um cãozinho pequenino castanho, com uma estrelinha branca na testa, umas manchinhas brancas nas patas e uns olhos profundamente castanhos, cheio de pulgas e que ainda bebia biberão.

Não será necessário dizer que me tornei uma boa cliente da farmácia e que já não vagueava nem de dia nem de noite, pois já tinha o meu pequeno amigo em casa.

Dormíamos os dois no sofá, tínhamos algo em comum: ouvíamos muito bem e, assim, qualquer som da casa era reconhecido por nós: eu abria os olhos e ele que estava deitado no meu peito abria os seus, sentíamos o mesmo, éramos duas almas em uníssono.

Ele vivia sob a minha protecção e podem ter a certeza que era capaz de morder, estraçalhar, bater-me, brigar, defendê-lo com unhas e dentes e talvez matar. Quando na rua ele era ameaçado por matilhas, estava eu à frente. Naqueles momentos, eu era o animal, rosnava como tal, afastava com ódio todos os que lhe queriam fazer mal, de tal forma exercia o meu instinto de defesa que os outros animais fugiam de medo e até o próprio Curisquinho pedia colo. Algumas vezes, vi-me obrigada a calçar os meus sapatos todo o terreno e a dar um valente “coice” nos mais atrevidos e também olhava o dono com o ar de “ também queres?” Nem a mim própria, alguma vez me defendi com tanta paixão, muitas vezes deixei que me espezinhassem…

E tanto colo me pediu o valente galão, cheguei a percorrer quilómetros com ele todo feliz às minhas costas, adorava sentar-se ao meu colo e acordar-me do meu sono profundo. Por ser tão amado tornou-se um cão meigo e alegre que se aproximava de todos: homens, mulheres e crianças. Acompanhava a filha dos vizinhos à missa ao domingo; recebia pratos de asas de galinha do vizinho da frente. Tal como a mãe odiava galinhas e era frequente vê-lo a perseguir um galo preto, a apanhá-lo com aquelas lindas patas Que orgulho sentia!? Recordo-me de vê-lo a patinar junto ao rio Cávado com a maior liberdade e felicidade.

Um dia, o Curiquinho não chegou a casa, passei toda a noite acordada a chamá-lo ou em constante desassossego. Pela manhã recebi uma chamada a dizer-me onde estava o vadio, fui buscá-lo e já de regresso a casa tomou banho.

Certa vez, já em Fafe, minha saudosa cidade, o Curisquinho ficou doente e eu ,como boa mãe fiquei em casa, coloquei o célebre artigo 102º, o meu filho de quatro patas estava primeiro. Jogávamos à bola com o Curisquinho e era tratado como um de nós.

Também o Curisquinho deixei pela carreira de professora, por vezes, sinto que não vale a pena tanto sacrifício, vou envelhecer neste pequeno mundo de invejosos, chorando ao som de algumas músicas todos que ficaram na distância.


2 comentários:

Fátima Vargas disse...

Olá, minha amiga!

Que lindo o "Curisquinho"!

Adorei ler sobre ele e sobre ti.

Que sortudo foi esse cãozinho por te ter como "mãe"!

Um bom dia para ti! Fica bem!

Beijinho da

Fátima

Krïxtïna disse...

Estava a ler esta tua passagem, e estava a imaginar-te em frente aos outros cães, com cara de má.... hi, hi, hi.
Tu és um espetáculo, uma coisa destas só podia vir mesmo de ti :-)
Mas não chores pelas coisas passadas, sorri por elas terem acontecido, tens de ver o lado positivo. Eu sei que não é fácil, às vezes, mas é o que tento fazer.
Ontem estive mesmo para te enviar uma mensagem, a dizer: vamos caminhar. Fico cheia de saudades das nossas caminhadas ao final da tarde depois de um dia cansativo de trabalho. Paciência, quando me lembro, sorrio para mim mesma.
Um beijinho grande e até um dia destes :-)